Há quem critique a Fórmula 1 desde antes de ela se tornar o circo particular de Bernie Ecclestone. Há quem diga que a Nascar é uma piada porque os carros só viram para um lado. Há quem desvalorize as provas de arrancada por jurar de pés juntos que é só acelerar em linha reta. Contudo, há uma categoria do automobilismo que, temos quase certeza, é unanimidade entre todas as tribos de entusiastas: o rali.
E nenhum campeonato de rali é maior que o WRC. O Campeonato Mundial de Rali é disputado desde 1973 — e, naquele ano, o primeiro título da história foi conquistado por um carro que, por alguma razão, fica à sombra do campeão seguinte, o Lancia Stratos HF. Hoje nós vamos contar esta história direito, começando do começo.
No início de tudo, o WRC era uma disputa entre fabricantes, não pilotos. Isto era herança do IMC, ou International Manufacturers Championship, que já trazia no calendário provas consagradas como o Rali Monte Carlo e o RAC Rally britânico, desde 1970. Naquela época, entre os nomes de destaque estavam o Datsun 240Z, o Lancia Fulvia, o Ford Escort, o Porsche 911 e o próprio Alpine A110. O vídeo abaixo dá uma boa noção de como eram as coisas na época (Também é uma boa para quem curte Alice in Chains):
Em 1973, depois de três títulos a três equipes diferentes — Porsche em 1970, Alpine em 1971 e Lancia em 1972, a FIA decidiu transformar o IMC no WRC. O número de eventos no calendário subiu de nove para 13, mais países foram incluídos e mais fabricantes se interessaram — e os que já estavam na roda apresentaram carros novos, como a Lancia fez com o Stratos HF. A Alpine continuou com o vitorioso A110 que, na temporada de inauguração do novo campeonato, conquistou seu último título nos ralis.
Primeiro: ao contrário do que se pensa, o A110 não é a versão francesa do Willys Interlagos (ou vice-versa). Este título cabe ao A108, apresentado pela Alpine no Salão de Genebra de 1957, que em 1961 passou a ser produzido no Brasil sob licença pela Willys Overland. De qualquer forma, o A110 é uma evolução direta do A108, e ambos eram baseados no Renault 4CV, popular que, no Brasil, é conhecido como “Rabo Quente” por seu motor na traseira.
O A108 herdou, inclusive, os motores de quatro cilindros em linha de 845 e 904 cm³ do 4CV — que tinham parcos 37 cv e 53 cv, respectivamente, mas eram capazes de levar o esportivo de apenas 600 kg aos 160 km/h em seus melhores dias. Santa fibra de vidro!
De qualquer forma, um motor maior e bem mais potente faria um estrago considerável — no melhor sentido possível — em um carro tão leve. E foi a combinação de baixo peso, maior potência e pilotos talentosos que deu ao sucessor A110 seu título no WRC.
A versão de rua do A110, lançada em 1961, era equipada com um quatro-cilindros de origem Gordini — preparadora francesa fundada em 1946 que, em 1968, tornou-se uma divisão da Renault — que deslocava 1,1 litro e entregava saudáveis 95 cv. No início da década de 1970, o carro passou a ser equipado com um 1.6 Renault com bloco de alumínio que, alimentado por dois carburadores Weber 45, rendia 125 cv, que eram capazes de levá-lo aos 210 km/h. Infelizmente este motor nunca chegou ao nosso Interlagos…
O A110 competia em ralis regionais pela Europa desde meados da década de 60 com bons resultados, mas sem vitórias. Estas começaram a aparecer na virada da década — e o carro que venceu o IMC em 1971 tinha um motor um pouco mais potente, com 155 cv. Era um bom carro? Bem, para se ter uma ideia, ele conseguiu uma vitória tripla na primeira etapa da competição, o desafiador Rali Monte Carlo.
Não seria o suficiente para superar a Lancia no ano seguinte, mas isto seria resolvido com um aumento no deslocamento para 1,8 litro, o que elevou a potência para espantosos 195 cv (para a época, claro).
A Alpine levou nada menos que quatro carros para disputar o WRC em 1973. E a estreia, justamente em Monte Carlo, não poderia ser melhor: o A110 de Jean-Claude Andruet foi o vencedor, seguido de outros dois A110 na segunda e na terceira posição — sim, outra vitória tripla.
Só podia ser um sinal de que coisas boas estavam por vir — e, de fato, das 13 provas disputadas ao longo da temporada de estreia do WRC, seis ficaram com o A110, o que garantiu o título para a Renault com uma boa vantagem: 147 pontos contra 84 da equipe vice-campeã, a Fiat, que só venceu uma prova com o clássico Abarth 124 Rallye, mas deu um show de regularidade.
E Monte Carlo foi só o começo: ainda que Stig Blomqvist tenha dominado com seu Saab na neve da Suécia, o Alpine A110 levou uma dobradinha no Rali de Portugal e venceu no Marrocos; na Grécia; em Sanremo, na Itália, e ainda conseguiu outra vitória no Tour de Corse, última etapa, que aconteceu na França. Foi um ano incrível para os franceses — mas também foi o último ano de glória: em 1974 a Lancia começou a correr com o Stratos, cujo V6 de origem Ferrari e dinâmica soberba, ficaria com o título nos próximos três anos.
Talvez esta tenha sido a infelicidade do A110 — conseguir uma vitória incrível, porém logo antes de uma sequência ainda mais incrível, da qual vamos tratar no próximo post desta longa série especial sobre as lendas vencedoras do WRC!
Por Dalmo Hernandes
Flatout
28 janeiro, 2015